segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Pano de Fundo

Os dedos tocam o céu nublado
passos ecoam um mundo que não me pertence
Mãos aplaudem um espetáculo que não me interessa.
Bocas comem uma comida impura.

Não sei o que faço aqui.
Eu não concordo com o seu relógio
Não quero ouvir suas canções alegres

Minha cabeça já pensou em campos verdes
mas o meu cenário ainda é o mesmo céu nublado.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Espelhando


Queria poder abraçar o mundo
Calar os gritos agudos
Costurar os rasgos doloridos
Limpar feridas latejantes
Tudo isso porque minha própria dor
já não pode ser curada.

domingo, 15 de novembro de 2009

Uma Tempestade - Parte I


O corpo dela jazia entalhado no chão. Como se fosse madeira, fora trabalhada a ferro puro, ganhando cores e perdendo vida, sob a chuva de um céu que chorava sua dor.
Talvez não houvesse lágrimas: estava seca. Não morta, não. Não morreria. Pelo contrário, a vida transbordava dela como um rio, sendo lavada pela água impura.
Suja e completamente limpa, sentia ardência cada vez que deixava o peito subir, buscando o ar que lhe escapava, se engasgando, tossindo, vivendo e morrendo.

Longe, passos ecoavam numa rua deserta, acompanhados de um rastro de mãos sujas de vermelho, sem ninguém notar. Ela quase podia sentir o calor das mãos dele, nos braços, pernas, seios, rosto. E logo depois o frio de uma lâmina a cortar sem piedade. A dor não era dele: a ele apenas cabia o prazer de ver a vida se esvair em suas mãos e depois a adrenalina de correr de algo indefeso.
Gemeu, e apenas o campo de futebol ouviu. Raios cortavam o céu como facas... Facas a cortarem sua carne macia, jovem. Era uma tempestade. Tempestade também era a dor que assolava seu coração. Sentia sim, sua pele queimar, seus músculos protestarem contra a água que os encharcava e transbordarem mais, mas era irrelevante. Mais do que seu físico, seu coração doía, latejando. A faca daquele homem não chegou a seus órgãos vitais, mas a mão dele certamente apertou e bateu com força no peito dela, embora não houvesse marcas de pancadas sobre a pele branca.

Olhos arregalados também eram banhados. Talvez por isso não houvesse lágrimas. Chorar uma dor incontestável, ardida, era insano, e precisava de sanidade.
Não iria morrer, não.
O cabelo, escurecido pelo sangue, caía-lhe sobre os olhos, bochechas. Bochechas abertas, sujas, vermelho-vivas. Seus olhos estavam manchados de vermelho também: por isso os raios pareciam ainda mais tenebrosos.
Desejou sim, por alguns segundos que um daqueles raios a atingisse com força, a queimasse, queimasse ainda mais do que se sentia queimar. A transformasse em algo sem vida, sem sexo, sem identidade. Tirasse o que fosse humano dela para que a ausência de humanidade nele deixasse de importar.

Imaginou-o em casa, limpando uma faca pequena, afiadíssima com um pano laranja, respirando forte, com um sorriso animal e uma expressão quase sexual no rosto. Não o odiava, não conhecia o ódio, assim como não conhecera antes o amor.
Seus dedos, ainda intactos, se fecharam sobre a grama ensopada, e sentiu cada músculo de seu corpo gritar contra a ação. Tentou dobrar o braço mas não foi capaz. Tentou de novo e finalmente algo mole e ensanguentado caiu sobre sua barriga.

O vestido branco, já transparente e rosa, estava rasgado em várias partes, como um estuprador faria.
Não, não houve estupro. Melhor que houvesse, e talvez se sentisse menos violada. Ao invés de abrir seu íntimo, ele abrira todo seu corpo, abrira sua pele, sua armadura.
Enfim, pensou em gritar, buscando sua voz, sem sucesso. Perguntou-se se ele também tinha, de alguma forma, machucado seu pescoço sem que morresse. Com muito custo, levou a mão à garganta, que não estava nada além de molhada, e ela conseguiu suspirar, aliviada. Concentrou-se em gritar, sem saber exatamente o quê.
Palavras não importam, pensou. Mas ainda assim, lembrou-se dos filmes de terror em que uma mulher, extremamente machucada, gritava por socorro, num interminável clichê onde ninguém respondia e seu torturador retornava, matando-a. Não aconteceria, não com ela.

Berrou um som sem sentido, sem palavras, apenas um som. Gritou de novo e ninguém veio. Gritou, mais alto, sentindo seu corpo todo latejar e tudo escurecer. A luz se acendeu e uma chama de esperança brotou em seu peito, demorando um pouco para perceber que eram apenas seus olhos se abrindo e fechando.
Continuou persistindo, gemendo e gritando o mais alto que pudesse, perdendo ar, forças, a si mesma.

Aos poucos a dor foi cedendo espaço a um silêncio extremamente profundo. Tratava-se de uma tranquilidade celestial e mesmo que seus lhos se abrissem não enxergava nada além da cor preta e feixes de vermelho.
Enfim, o vermelho desapareceu e já não pôde enxergar. Não pôde ouvir. Não pôde sentir. Já não estava mais lá.

sábado, 26 de setembro de 2009

We live in a Fairy Tale...


Era uma vez uma criança, um menino, que passava muito tempo na casa de sua avó. Descendente de ciganos, ela lhe contava muitas histórias sobre seus antepassados antes dele dormir. Convenientemente, eram histórias de terror que ele nunca levara a sério, pois a avó contava dando risadas.

Numa noite, a senhora abriu um livro muito velho e usado e contou a história dos Anjos de Khabash.
Tratava-se de doze anjos que gostavam de se divertir com crianças pequenas. Chamavam-nas durante o sono e as levavam para um reino encantado onde podiam comer, beber e brincar incansavelmente.
Os anjos eram altos e tinham olhos muito claros, quase totalmente brancos; suas asas eram longas e douradas, podendo voar até o Sol ou até a Lua.
Em especial, pegavam as crianças que dormiam mal, as que demoravam a cair no sono, porque dormiam até mais tarde.

O menino perguntou se todas as crianças gostavam de brincar com os anjos. Não, a avó respondeu.
Nem com todos os meninos os anjos eram amigáveis. Poderiam ser ariscos e brincar de machucá-las com suas asas.
E o que acontece a essas crianças, perguntou ele, meio assustado. A avó não respondeu. Apenas sorriu e beijou a testa do neto, abrindo a janela do quarto.
É melhor ficar quieto e dormir logo, disse, saindo do quarto.

Os minutos se arrastaram pesadamente, sem trazer o sono do garoto, que começou a ficar com medo. A casa da avó ficava no meio de várias árvores e um jardim grande, de modo que os sons da noite só cessavam quando eram substituídos pelos sons do dia. Logo o menino começou a estranhar o silêncio profundo que se instalou sobre a casa.
Não havia som algum, nem sequer a respiração da avó. Seus olhos se enceram de lágrimas e buscou a voz para chamar algum nome. Estava rouco e lhe faltava ar, seus pulmões doíam como os de um recém-nascido ao dar o primeiro suspiro.

O primeiro som o fez dar um leve arranco na cama e cobrir a cabeça. Era um som forte, vindo do ar. Respirava baixo e rápido, as lágrimas escorrendo livremente pelo rosto, agarrando-se firmemente às cobertas.

O segundo som era igual, porém mais forte. E veio de novo, e de novo. Seguidamente, até ficar desigual. Custou a reconhecer o barulho. Era assustador. Parecia que estava na praia, envolto de pombas voando a seu redor.
Bater de asas. Asas compridas.

Gemeu baixinho, chamando pela avó. Não houve resposta. O quarto ficava insuportavelmente quente, como se estivesse cheio. Era um cômodo pequeno.
Sentiu coisas baterem em sua cama, mas não ousou olhar por cima do cobertor; era como se várias pessoas estivessem se mexendo dentro do quarto, todas ao mesmo tempo.
O oxigênio lhe escapava, respirando um ar que lhe parecia sujo e demasiado quente, que entrava rasgando suas vias respiratórias.

Algo fez pressão em seu corpo. Começou pelos pés e foi subindo, como se algo deitasse sobre ele, membro por membro, e por fim ele estava todo debaixo de algo pesado, exceto por seu rosto.
O cobertor que lhe cobria a face começou a ser abaixado; seus olhos arregalados se fecharam com força.


No dia seguinte a avó abaixou o tecido, revelando o rosto do menino, sereno, como se estivesse muito longe.
Ele não abria os olhos, não abria.

domingo, 20 de setembro de 2009

Sound


Havia uma garota que gostava de tocar flauta. Vivia pela flauta e pelo som dela; passava horas tocando, incansavelmente.

Um garoto resolveu brincar e roubou-a, enterrando-a no jardim de sua casa.

Durante semanas a flauta foi procurada, sem sucesso. O menino se divertia vendo o desespero e o choro da menina, que não podia comprar outro instrumento, pois era pobre.

Os dias foram se passando como um lenço ao vento, arrastados e leves. A menina se destruía, perdendo peso e perdendo alma. Um mês depois estava apática, amarela e insana. Gritava, urrava e batia. Não era si mesma e sim um clone mal feito e revoltado.

O menino se assustava: pensou em devolver a flauta, observando-a de longe; sentada na frente de casa a menina balançava o corpo, a tarde toda, como se esperasse que solenemente algo encostasse em seus pés e veria que, rolando seu amado instrumento voltada e ela voltaria a ter cor, tocando e enchendo-se de música. Obviamente, nada acontecia. Seus olhos não produziam mais lágrimas e seu corpo não produzia mais excrementos. Apenas axistia.

A flauta fora desenterrada. Humildentemente, deixada na porta da casa de sua dona, toda limpa, com um laço de fita azul. Como nova: um presente!

Ao ver seu grande amor, a menina desmaiou. O menino ficou observando os dedos flácidos, o rosto flácido, o corpo flácido, a flauta dura escorregar por entre os dedos. O baque. O silêncio num pôr-do-dol maligno. Não havia sangue e nem fluídos. Era tudo limpo.

Mas o cheiro no ar... era amargo como a dor. Penetrava-o com força. Fazia-o tremer: ele não foi até lá. A menina também não se levantou.

O tempo passou e a flauta rolou um pouco, fazendo um som que o despertou. Ouviu apenas algo agudo e belo.

Era triste. Miseravelmente triste e indefinido, cheia de notas que não combinavam, reratando uma solidão infinita, uma dor incansável, um lamento terrível. Era apenas uma música, o garoto pensou. Mas ela o consumia. Era como os olhos de uma fera indomável, hipnotizantes e tentadores, mas para onde seria arrastado, para o inferno?

Cessou e ele sentiu algo quente lhe escorrer pelos ouvidos, descendo por seu pescoço e pelo seu peito, molhando a camisa branca. De repente havia cor ali, se alastrando. Tão belo e forte!

Ficou ali admirando o vermelho que tingia se peito e barriga, esquecendo-se do corpo inerte que jazia por perto. A macha aumentava e ele também era consumido por ela, tornando-se vulnerável. Ouviu vozes. Ouviu gritos. Passos. Estavam atrapalhando, ele não conseguia se concentrar na cor. O nome da menina ecoou em sua mente.

Vermelho. Dor. Tontura. Ela.

Ah, a menina.

Tudo ficou vermelho.

Reticências


Incrível como todo mundo morre, mas nem todo mundo vive. Incrível como um ano passa e percebe-se dele quase nada foi aproveitado; estranho é pensar que há pessoas olham para uma longa vida e percebem que quase nada foi aproveitado. Que cada ano foi um espaço vazio, como bolhas a serem preenchidas apenas de ar.

Sonhar nos traz os objetivos à mente, mas nem sempre, às nossas mãos; vidas plenas não são feitas somente a partir de sonhos. Nunca adiantou sonhar e não colocar em prática. Muitas vezes o sonho é melhor que a relaidade, mas a busca de um sonho dentro de uma realidade, ainda é pequena. As pessoas cada vez mais se condicionam a mesmice insuficiente. Não anseiam por mais. Não aproveitam o que têm em mãos, o que muitas vezes é simples, mas infinitamente belo; o que têm, de mais precioso, nunca é suficiente. Quando não têm nada, não buscam. Tão doentio.

Onde estão os sonhos?
Não na realidade.

Com certeza estão perdidos em algum canto solitário da mente, empacotados e embrulhados, pequenos, dando espaço às futilidades. Sem serem sonhados e sem serem colocados em prática.
De que vale a vida? De que vale essa busca insana por algo que nunca chega? Não vale. É inexistente e oco.

Isso não é um culto ao suicídio.

Nada




Há dias em que o som
se propaga sem ruído

E num dia triste desses
o toque estava ausente;

Cenas foram feitas
e nunca foram vistas

Assim como também há cheiros
que nunca serão sentidos

Se nada é ouvido, sentido ou visto
o que estamos fazendo aqui?