domingo, 15 de novembro de 2009

Uma Tempestade - Parte I


O corpo dela jazia entalhado no chão. Como se fosse madeira, fora trabalhada a ferro puro, ganhando cores e perdendo vida, sob a chuva de um céu que chorava sua dor.
Talvez não houvesse lágrimas: estava seca. Não morta, não. Não morreria. Pelo contrário, a vida transbordava dela como um rio, sendo lavada pela água impura.
Suja e completamente limpa, sentia ardência cada vez que deixava o peito subir, buscando o ar que lhe escapava, se engasgando, tossindo, vivendo e morrendo.

Longe, passos ecoavam numa rua deserta, acompanhados de um rastro de mãos sujas de vermelho, sem ninguém notar. Ela quase podia sentir o calor das mãos dele, nos braços, pernas, seios, rosto. E logo depois o frio de uma lâmina a cortar sem piedade. A dor não era dele: a ele apenas cabia o prazer de ver a vida se esvair em suas mãos e depois a adrenalina de correr de algo indefeso.
Gemeu, e apenas o campo de futebol ouviu. Raios cortavam o céu como facas... Facas a cortarem sua carne macia, jovem. Era uma tempestade. Tempestade também era a dor que assolava seu coração. Sentia sim, sua pele queimar, seus músculos protestarem contra a água que os encharcava e transbordarem mais, mas era irrelevante. Mais do que seu físico, seu coração doía, latejando. A faca daquele homem não chegou a seus órgãos vitais, mas a mão dele certamente apertou e bateu com força no peito dela, embora não houvesse marcas de pancadas sobre a pele branca.

Olhos arregalados também eram banhados. Talvez por isso não houvesse lágrimas. Chorar uma dor incontestável, ardida, era insano, e precisava de sanidade.
Não iria morrer, não.
O cabelo, escurecido pelo sangue, caía-lhe sobre os olhos, bochechas. Bochechas abertas, sujas, vermelho-vivas. Seus olhos estavam manchados de vermelho também: por isso os raios pareciam ainda mais tenebrosos.
Desejou sim, por alguns segundos que um daqueles raios a atingisse com força, a queimasse, queimasse ainda mais do que se sentia queimar. A transformasse em algo sem vida, sem sexo, sem identidade. Tirasse o que fosse humano dela para que a ausência de humanidade nele deixasse de importar.

Imaginou-o em casa, limpando uma faca pequena, afiadíssima com um pano laranja, respirando forte, com um sorriso animal e uma expressão quase sexual no rosto. Não o odiava, não conhecia o ódio, assim como não conhecera antes o amor.
Seus dedos, ainda intactos, se fecharam sobre a grama ensopada, e sentiu cada músculo de seu corpo gritar contra a ação. Tentou dobrar o braço mas não foi capaz. Tentou de novo e finalmente algo mole e ensanguentado caiu sobre sua barriga.

O vestido branco, já transparente e rosa, estava rasgado em várias partes, como um estuprador faria.
Não, não houve estupro. Melhor que houvesse, e talvez se sentisse menos violada. Ao invés de abrir seu íntimo, ele abrira todo seu corpo, abrira sua pele, sua armadura.
Enfim, pensou em gritar, buscando sua voz, sem sucesso. Perguntou-se se ele também tinha, de alguma forma, machucado seu pescoço sem que morresse. Com muito custo, levou a mão à garganta, que não estava nada além de molhada, e ela conseguiu suspirar, aliviada. Concentrou-se em gritar, sem saber exatamente o quê.
Palavras não importam, pensou. Mas ainda assim, lembrou-se dos filmes de terror em que uma mulher, extremamente machucada, gritava por socorro, num interminável clichê onde ninguém respondia e seu torturador retornava, matando-a. Não aconteceria, não com ela.

Berrou um som sem sentido, sem palavras, apenas um som. Gritou de novo e ninguém veio. Gritou, mais alto, sentindo seu corpo todo latejar e tudo escurecer. A luz se acendeu e uma chama de esperança brotou em seu peito, demorando um pouco para perceber que eram apenas seus olhos se abrindo e fechando.
Continuou persistindo, gemendo e gritando o mais alto que pudesse, perdendo ar, forças, a si mesma.

Aos poucos a dor foi cedendo espaço a um silêncio extremamente profundo. Tratava-se de uma tranquilidade celestial e mesmo que seus lhos se abrissem não enxergava nada além da cor preta e feixes de vermelho.
Enfim, o vermelho desapareceu e já não pôde enxergar. Não pôde ouvir. Não pôde sentir. Já não estava mais lá.

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