domingo, 16 de maio de 2010

Prelúdio


O vampiro deixou o telhado e caiu no parapeito da janela do edifício sem esforço. O vento da noite tinha cessado o e um silêncio profundo abatia a rua, deixando os humanos dormirem sem saber que a verdadeira ameaça não fazia um barulho sequer.

Seus olhos esquadrinharam a janela buscando algum movimento dentro do quarto. O cheiro da humana era forte, quente e pulsante, como um perfume vindo inferno: o coração dela era mais vivo que seu amor, e mais doce que o próprio sangue. E mesmo sendo tão humana e tão quente, era, no entanto muito especial. Não possuía atividades extraordinárias, era apenas humana, normal.

Na cama ela rolava, pois não conseguia dormir. Seus olhos arregalados não viam o vampiro, e não cogitava a possibilidade se estar sendo vigiada. Tratava-se de uma garota comum que o imortal vinha observando há quase duas primaveras. Era linda e inteligente; bem sabia que humanas com tais características existiam aos montes, mas talvez fosse o sorriso dela que o prendia àquele pobre coração mortal. Infelizmente, ele não acreditava que ela pudesse sorrir ao vê-lo; sua aura sobrenatural era forte e ela se assustaria. O vampiro, antes de ser romântico, é um assassino e um caçador na noite. O instinto animal que os humanos possuem sente esse tipo de coisa. Por isso mantinha-se afasta, sendo observando, nunca como coadjuvante e nunca como personagem principal, pois Julieta sempre seria a protagonista.

“Seu coração dói ao vê-la, eu posso sentir.”

Outra alma perdida alcançou o telhado, trazendo uma voz que balançou a noite, mas que era baixa demais para ser percebida por humanos.

“Você não sente minha dor, pequena.”, a voz dele não era mais suave ou mais alta. Apenas mais sábia e experiente

“Mas sinto sua alegria, e não a possuo no momento.”

“Não se preocupe. Meu corpo e minha alma há muito se perderam. A dor nessa janela e a alegria a seu lado é o que tenho.”

“E por que a observa se te faz mal? É humana, poderá morrer logo. Posso cuidar disso.”, disse a vampira jovem, se aproximando do mestre, se segurando nas estruturas do prédio, parecendo exaltada.

“Não faça bobagens. Mais do que qualquer outra essa humana merece viver por ser pura e ter minha afeição. Não é ela quem me faz sofrer e sim minha imortalidade.”

O rosto dele era impassível, mas seus olhos eram de sofrimento. A vampira observava solene.

“Você a ama?”, perguntou, quase inaldivelmente. O mostre tinha sede, e ela há pouco se alimentara, portanto estava intensa e corada, ao contrário do homem, que, pálido como a luz, a fitava com seus olhos muito vivos.

“Amo.”

“Do mesmo jeito que me ama?”

“Não. A amo como filha no Sangue... e a amo como inalcançável. Ela não é para mim, por ser humana.”

A mais jovem, estreitou os olhos, impaciente, e colocou a mão no rosto dele.

“Eu posso dar o Abraço nela, se sentir-se incomodado em fazê-lo. Eu não me incomodo.”, disse. A mão dele encontrou a dela, acariciando-a com dedos frios.

“Não posso interromper uma vida feliz por puro egoísmo: ela não sabe da minha existência e me odiaria como seu criador. Prefiro não ter nada a ter seu ódio.”

“E eu não sei se me sentiria bem com outra pessoa conosco.”

“Anne, fique tranqüila. Ainda não é hora de trazermos alguém para nossa vida. Você ainda é jovem e possessiva. Nem seu corpo ou seu espírito são fortes o suficiente.”

“Mas o que posso faz para lhe trazer felicidade, então?”, perguntou Anne, com os olhos cheios de lágrimas de sangue. Era jovem demais, e despreparada. Seria perigosa se deixada sozinha, e o mestre sabia disso. Ela era sua responsabilidade, ela era como uma criança segurando uma faca afiada: perigo para os outros e para si mesma, com a pequena diferença de ter o corpo de uma moça jovem, e talvez isso a tornasse ainda mais vulnerável. Então ele abraçava essa menina, e a trazia para as trevas, como dele.

“Fique tranqüila e não se preocupe comigo. Meu coração está bem ainda que sofra, e não sou um romântico. Você pouco entende dos assuntos do amor; foi transformada cedo e sua paixão se restringe a mim. Quando chegar a hora, há de encontrar outro imortal a quem amará... ou mesmo um humano.”

“Eu não quero que isso aconteça, não quero te deixar.”

O Mestre tinha idade e experiência. Seus olhos eram sábios e tristes, meio fora daquele rosto jovem e branco. Seu sentimento era puro e avassalador, sempre, mas ele o escondia. Era como um bule de chá, onde grande quantidade de água ferve, mas apenas um pouco de vapor consegue sair. Ele sorriu para a jovem na sua frente e olhou para o quarto, onde Julieta dormia. Ela tinha os cabelos castanhos e rosto delicado, com cheiro de sangue bom. Anne estava com sede de novo.

“Mas vai me deixar, e serão anos... mas não se preocupe. Ainda temos muitas noites juntos.”

“Vamos. Você ainda não se alimentou e já vai amanhecer.”, disse ela, mudando de assunto propositalmente e pulando do prédio.

Seu mestre se virou e pousou no chão do quarto, para tocar na bochecha branca e cheia de vida da mulher adormecida; ela se encolheu com o toque frio de sua mão.

“Seus olhos são do castanho mais puro, meu amor...”, disse, e mergulhou na noite com sua filha.

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