sexta-feira, 2 de julho de 2010

A mulher dos cabelos de prata


Marcelo observava solene pelo buraco da fechadura. o andar dela era o quarto, o dela o terceiro: o apartamento dela, o 402, o dele, o 301.

Todos os dias ela passava, sem fazer nenhum ruído. Nunca a tinha encontrado nas escadas, exceto às 6:35 a.m., que era quando ela saía para comprar seu café da manhã. Ela saía com passos leves de bailarina e voltava ainda mais suave, com frutas e pão.

Uma banana, duas maçãs, um pêra e cinco limões. Alguns pães de sal e rosquinhas. tudo dentro de uma bolsa colorida, ao invés das de plástico.

Sua vizinha, sem nome, ou de título desconhecido, era um mistério. O mais lindo mistério que ele já tinha visto. Os olhos eram azul escuro, a boca vermelha e fina, com sardas no rosto. Um corpo magricela e frágil. Mas o que mais brilhava nela ainda eram os cabelos de prata, que desaguavam ondulando pelas costas, sempre soltos. Eram descaradamente louros e brilhantes, refletindo a luz do sol que passava através do vidro da janela do corredor.

Os vizinhos a chamaram de Bela, mas sabiam que era apelido. Marcelo sempre soube que era, antes mesmo de confirmar: Bela não era nome para ela. O nome dela devia ser comum e sutil, que passasse despercebido.

Ela era jovem e cheia de vida: ainda assim, nunca a vira sorrir. Já a notou cantarolando com um leve sorriso nos lábios músicas que ele desconhecia, enquanto subia correndo as escadas, sem barulho.

Quando Marcelo a viu pela primeira vez, tinha ido pegar a correspondência e estava fechando a porta do apartamento. Ela passou, e tudo que ele viu foi o fulgor de seus cabelos prateados ao refletir o sol, que perdia toda sua relevância no contato com aqueles fios. Desde então, ele tomava seu café e fumava seu cigarro matinal, esperando as 6:35, quando sua vizinha dos cabelos de prata passaria com sua sacola de compras e seu semi-sorriso.

Era sua diversão particular observa-la a desejar de um modo tão puro. Queria conhecê-la: descobrir seus gostos, se era mesmo tão apegada à rotina como parecia, se gostava mais das frutas que das rosquinhas. Que origem tinha, para ter aqueles cabelos maravilhosos? Queria descobrir o cheiro dela, e aquilo que ela detestava nas pessoas do prédio. Por que era tão retraída?

Bela, ou a mulher dos cabelos sem nome, nunca deixara uma fruta cair e nunca olhara para a porta do 301. Passava direto, voltando para sua redoma de madeira, concreto e jazz. Marcelo ouvia o jazz que tocava no andar de cima, de manhã. Sempre imaginou que vinha do apartamento dela, já que o 401 era ocupado por uma viúva, que às vezes saía de casa apenas para levar o gato ao veterinário.

Ele a via passar e imaginava-a sentava numa mesa branca, tomando chá de ervas e comendo suas rosquinahs enquanto lê um romance de Jane Austen. Ela parecia o tipo de pessoa que gosta de Jane Austen, porque parecia ser doce e febril, como o próprio chá. mas não se surpreenderia se a visse lendo Nietzsche, porque seu semblante era adravelmente frio, mesmo enquanto sorria. Suas mãos com certeza eram geladas como as frutas que comia toda manhã...

Ah, a mulher dos cabelos de prata. Como Marcelo a queria, nem que fosse só para olhar, um dia todo, enquanto tragasse seus cigarros e engolisse seu café, sendo engolido lentamente para dentro daqueles fios claros como a lua e o sol.

Vá, Marcelo. Abrace-a, ajude-a a carregar seus pães de sal.

Não, ele diz para si mesmo, tragando seu cigarro e se levantando da cadeira. Era hora de ouvir jazz, John Coltrane, que vinha se arrastando, bem baixinho lá do andar de cima, de onde ele só ouvia isso, o jazz... e mais nada. Até a manhã do dia seguinte.

2 comentários:

  1. Muito bom, Carol, gostoso de ler *_*
    Ddii_ sempre foi um Marcelo.

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  2. Eu leio isso imaginado o Marcelo imaginando o seu porte físico como o Sanji de One Piece, hmm

    Você conquistou uma identidade, acredito. Isso vai ajudar bastante, continue assim e ainda vou ter livros seus em minha estante :3

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